quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Kenya, o Coelhinho e a Mídia

Até onde podemos confiar na mídia? Será que os veículos de comunicação se dão conta da responsabilidade que têm? Será que percebem seu papel na sociedade? Para esta última pergunta acho que a resposta é sim. E fica nítido que usam todo esse poder. Para o bem ou para o mau.

Os acontecimentos que vemos no Kenya (Quênia) desde o fim do ano passado, apesar de uma censura local, estão sendo cobertos pela mídia internacional. Os quenianos também fazem uso da Internet para transmitir ao mundo sua visão dos eventos. Mas, se pararmos para analisar como os meios de comunicação divulgam notícias, aqui no Brasil, por exemplo, sobre a situação do Kenya, notaremos que colocam em primeiro plano um dito conflito tribal, um choque entre etnias. A base das notícias é que se trata de violência étnica. Com isso, simplificam e desinformam. É manipulação política que tem a mídia irresponsável como ferramenta. O Professor David Anderson da Oxford University é um dos que criticam a forma como a mídia apresenta os tristes acontecimentos. Segundo ele "descrever (o que vem ocorrendo) como violência étnica não reflete a verdade. Trata-se de violência política do tipo mais clássico. Etnicidade é a forma de mobilização: é o modus operandi, não a razão principal."

"Describing it as ethnic violence is not quite right.
This is political violence of the most classic kind.
Ethnicity is how you mobilise it: that's the modus
operandi, not the rationale."
Oxford University's Professor David Anderson

Um dos meios usados para instigar a violência, não pregando-a diretamente, mas estimulando a discórdia, é o que está sendo empregado por algumas rádios quenianas. Segundo matéria da agência Inter Press Service (IPS) e do jornal queniano Daily Nation, essas rádios estariam propagando o ódio étnico. Estimulando os ouvintes para que apóiem líderes de sua própria comunidade, sua própria tribo, e nutrindo "maus sentimentos" para com pessoas de outras comunidades. Nos comentários fazem uso de expressões como "erva daninha", "babuínos" e "animais do oeste" para se referirem a membros de outras etnias.

Isso faz lembrar um dos episódios mais tristes da história da humanidade, ocorrido em Ruanda em 1994. Um genocídio com quase um milhão de vítimas onde uma rádio teve um papel crucial no estimulo ao ódio. O nome da rádio era Mil Colinas e pregava a morte de Tutsis, chamando-os de "baratas".

Não estranho que um veículo de comunicação assuma uma postura política, direcionando sua programação e discurso. Vemos isso aqui no Brasil, vemos também recentemente nos EUA onde jornais declaram abertamente apoio a certos candidatos. Isenção da mídia é algo raro, senão utópico. Mas não devemos aceitar o uso de tanto poder para jogar um grupo contra outro pura e simplesmente, causando tragédias como a que ocorre no Kenya. Devemos rechaçar a existência de uma mídia irresponsável. E isso só se consegue tendo uma postura crítica. E para ter uma visão crítica sobre determinada notícia é preciso educação e vontade. A preguiça atrabalha bastante. Se sentarmos no sofá, lendo jornais ou assistindo ao telejornal, e aceitarmos tudo o que nos está sendo "imposto", corremos o sério risco de sermos demasiadamente permissivos com tudo isso.

Já ouvi comentários de que campanhas contra o racismo, assim como políticas de ação afirmativa e o fato de termos uma secretaria com status de ministério e voltada para políticas "raciais", instigariam o racismo. Ou melhor, como partem do princípio de que não há racismo e sim desigualdade social, tais políticas e projetos fariam com que o racismo fosse "criado" em nossa tão perfeita e democrática sociedade. Bem, isso é um assunto para um post futuro, mas que de alguma forma se relaciona com o que quero dizer. Cito para que minha opinião não seja confundida.

Mas voltando a questão da mídia irresponsável. O que mais me assusta é quando o objeto de tal política de ódio são as crianças. Há alguns meses tivemos conhecimento que um programa infantil do Hamas, partido político e movimento guerrilheiro palestino, fazia uso de um personagem (que lembrava o Mickey) chamado Farfour, de forma a instigar o ódio e a luta contra Israelenses. Bem, não defendo quaisquer dos lados, mas a política e as ações de Israel para com a Autoridade Palestina dificilmente despertarão amor. O mesmo pode-se dizer do inverso.

Mas o que vi ali no programa era terrorismo. E do pior tipo, se é que existe algum tipo bom de terrorismo. Algum tempo depois, aquele personagem morreu (ficticiamente, porém visualmente literal para efeito de interpretação da audiência) no programa e surgiu outro, uma Abelhinha de nome Nahoul, que também teve o mesmo fim. Aliás, a simulação da morte faz parte do programa e é usada como parte da manobra. Pelo menos assim vejo. Surgi então outro personagem, Assud (Leão), que vem da diáspora para substituir seu irmão morto. Com diálogos fortes com uma menina que, acho, seria apresentadora (algo como Ana Maria Braga e Louro José, para usar uma comparação esdrúxula), Assud, que apesar de Leão no nome é um coelho (sua explicação: "Porque um coelho não é bom. Ele é um covarde"), usa termos como 'mártir', ‘eliminar e comer (literalmente do verbo em inglês “to eat”) todos os judeus’. Dá impressão que estimula a criação de soldados. Parece um ciclo vicioso. Já não bastasse o que as crianças palestinas sofrem com tanta guerra, destruição, o programa infantil que deveria mostrar um mundo melhor, estimular algo de bom, o amor, a paz, a educação, prega a continuidade de tudo. Resultado: mais ódio. Talvez minha exposição seja um tanto reducionista ao citar o caso Palestina-Isralel, mas quando crianças são alvos de atos tão irracionais (a guerra não pode ser irracional, um muro dividindo um país não é racional, bombas lançadas contra cidadãos ou homens-bomba tampouco)... Bem, as crianças devem ser preservadas de toda essa loucura. É triste. Clique aqui para assistir ao vídeo.

A Rádio Mil Colinas, algumas rádios do Kenya, e o programa "Pioneers of Tomorrow" do Hamas, são exemplo de uso de ferramentas tão importantes e poderosas para algo ruim para todos. Comete-se um crime bárbaro, assustador.

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