quarta-feira, maio 28, 2008

A viabilidade do SER

Mesmo com meu pessimismo, de certa forma eu continuo acreditando nas pessoas. Não todas, é certo. Aí seria otimismo demais, ou cegueira absoluta. E ainda tem o maldito preconceito, ou medo, ou ignorância, que por vezes me fazem acreditar ou desacreditar das pessoas, das coisas, erradamente. É boa ou má, honesta ou corrupta? Viável ou inviável?

Hoje recomeça no Supremo Tribunal Federal a audiência sobre o uso de células-tronco nas pesquisas científicas. O lado que defende argumenta, dentre outras coisas, que o "material" objeto da pesquisa e debate não geraria um ser. Lidariam, pois, apenas com embriões inviáveis. O outro lado diz se tratar de uma vida em formação, sendo um ato desumano, antiético e reprovável sob o olhar de Deus, seu uso para pesquisas científicas.

De certa forma, ambos os lados defendem a vida. Um usando as pesquisas e suas possibilidades como forma de salvar vidas. Outro, com um posicionamento de certa forma pautado na religião, defende que o direito à vida deve ser resguardado desde o início. Bem, nada contra inclinações religiosas de um, até porque esse negócio de Estado laico é balela; ou visões cientificistas de outro, pois muito do que somos hoje deve-se aos avanços das ciências.

Mas o que eu gostaria de refletir é sobre essa tal viabilidade ou inviabilidade. Pra começar, sempre penso como seria bom se toda essa energia usada para se discutir o pode-não-pode das pesquisas com células-tronco, citando vida e direitos humanos em ambos os lados, fosse revertida para a defesa de certos seres humanos que a sociedade trata, apesar do discurso, como inviáveis.

Imaginem se fosse levado ao Supremo Tribunal Federal ou instituições congêneres de quaisquer países um processo relacionado à defesa do menor que perambula, dorme e tenta sobreviver nas ruas. Imaginem se fossem ao nosso STF defender a aplicação de fato do Estatuto da Criança e do Adolescente. Imaginem se essa audiência tivesse o objetivo de fazer com que o dinheiro público fosse aplicado, primeiramente em educação, de modo a extirpar de nossas vidas as políticas sujas e horrendas que promovem cenas tristes como as de crianças andando à pé quilômetros e mais quilômetros para ter aula, muitas sem alimentação básica, com escolas por vezes sem o básico (e um governo querendo colocar todas informatizadas) de uma construção, o teto, com estruturas insalubres. Eis uma causa que realmente defende a vida, em termos científicos, religiosos, sociais, morais, éticos...

E existem outras causas, igualmente humanitárias, que prezariam pela vida, como por exemplo, justiça, funcionalismo público, família. Imaginem um processo junto ao Supremo que pedisse o fim da impunidade; o fim das brechas "legais" que permitem que assassinos confessos continuem a solta; que corruptos que desviam dinheiro do povo posassem de bons moços desfilando pelos mesmos corredores de órgãos de onde cometeram o roubo.

Imaginem um processo que exigisse o fim dessa relatividade da justiça, onde quem tem usufrui e quem não tem paga. E se um grupo humanitário entrasse com um processo contra todos os funcionários pagos com dinheiro público (em cargos políticos ou concursados ou quaisquer outros) que insistissem em prestar um desserviço à população sabendo de sua certa impunidade? E outro processo para resguardar aqueles que cumprem com sua função e obrigação, fazendo jus ao salário, dos destemperes de superiores postos lá por critérios políticos e pessoais.

E se organizações em prol dos direitos humanos brigassem na última instância da justiça desse país para que o bem-estar da família fosse resguardado, sem paternalismos viciantes de governo, mas com políticas de fato, consistentes, definitivas, sérias?

Mas eis que temos, não sem importância, um embate legal para saber se um organismo considerado inviável pode ou não ser usado em pesquisas que num dado tempo permitiriam que outros seres, esses definitivamente humanos em sua forma e conteúdo, ganhem ou tenham restabelecida a qualidade de vida.

Desde que comecei a trabalhar e pude ver algo diferente do que via em Mesquita, uma das cenas que mais me impactou, e que me recordo até hoje, foram de pessoas (seres humanos, viáveis em última instância) recolhendo os restos de restaurante próximos ao escritório. A cena continua e, me parece, tem aumentado o número de protagonistas nessa triste história. Nesses dias, passei a acordar mais cedo devido ao novo emprego; saio cedo de casa e, no caminho para o ponto do ônibus, vejo muitos meninos dormindo nas calçadas com seus blusões envolvendo o corpo em posição fetal como que regredindo ao ambiente seguro do ventre materno e tendo o blusão por placenta. (Eis a razão de os ditos meninos de rua terem sua imagem estereotipada como figuras pequenas vestindo camisas num manequim bem alto. O blusão é uma proteção). Me imagino questionando um desses seres, tidos como viáveis por uns e inviáveis por outros, o que ele acha sobre a defesa das células-tronco.

Teria de explicar o que seria uma célula-tronco e... Ô tio, qui parada é essa? Os cara num-taum nem aí pra mim, só mi dão porrada, mi-ixculaxam. Cuando mi pegam mi tacam naquele inferno e saiu pió de lá, tá ligado? Na-dianta falá qui só quero cumida qui geral acha que vô robá. Até tu fica bolado. Tá pensando qui num vi. Essa vida é um isculaxo merrmo! Aí tu tá falanu qui-us dotô tá defendeno essa po*&%$rra aí que num vai nem nacê? I EU po%&*rra?

É muito complicado. Acho melhor não perguntar tal coisa, pois esse SER poderia se sentir ainda mais enjeitado por todos e ficar ainda mais revoltado. Eu provavelmente ficaria.

Como explicar que existem “coisas” que são viáveis e outras que são inviáveis? E que mesmo as inviáveis se tornam viáveis sob certo aspecto? E, além disso, como explicar, ou melhor, como posicioná-lo dentro desse contexto de viabilidade e inviabilidade, explicando por fim a razão de não ser ele tratado como um ser viável de fato e defendido como tal?

Enquanto isso, no Supremo…

Ser
Pode Ser
Pode não Ser
Ser poder
Não poder Ser
O Ser que pode Ser
O Ser que não pode Ser
Ser

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