O tempo e eu
Houve um tempo em que eu admirava mais o céu, o formato das nuvens, o brilho e o posicionamento das estrelas, as nuances de azul num dia claro, o som refrescante da chuva após momentos de calor, a força e a luminosidade de raios rasgando o firmamento, o despontar extasiante do Sol num horizonte ou seu saudoso “até logo” noutro.
Houve um tempo em que o curto trajeto ao mercado próximo era uma aventura cheia de possibilidades, mistérios. E em que a mesma distância, de uma quadra, em outra direção, também oferecia a deliciosa angústia do acaso, do novo, em que um quarteirão era um mundo, em que tudo tinha seu ritmo, seu momento, seu tempo.
Houve um tempo em que eu brincava mais. Um tempo que eu plantava e via crescer e colhia e me gabava daquele fruto. Um tempo de cheiros, de sons, de ares que hoje não estão mais aqui. Um tempo em que subia na goiabeira para colher a delícia vermelha ou branca que fazia parte dos meus dias. Houve um tempo de goiaba branca.
Houve um tempo em que eu jogava bola-de-gude. Jogava búlica, triangulo, mata-mata. Um tempo de unhas arranhadas e pensamento liso, de mãos sujas e consciência limpa. Um tempo de pés descalços, de peito aberto, de cabeça erguida. Foi o tempo da altivez da criança na rua. Aliás, naquele tempo a criança de rua era tão somente o infante com vitalidade, espaço, segurança e animação suficientes para brincar durante quase todo o dia.
Houve um tempo em que minhas feridas, mais que constantes, se limitavam a joelhos ralados, dedões esfolados, pés furados e mãos escoriadas. Um tempo em que a consciência da coisas, das pessoas, do mundo, ainda não havia amadurecido.
Houve um tempo em que minha canja tinha pés de galinha, em que comia feijão misturado à farinha e carne seca desfiada, fazendo bolinhos com a mão. Nesse tempo eu aguardava ansioso o refogado de ponta de abóbora – o broto da abóbora – que colhíamos nos matos da proximidade, assim como a papa de angu com caruru-do-mato. Nomes e modos que causam estranheza para os viventes de hoje. Mas houve esse tempo.
Houve um tempo em que o bolo era de tabuleiro, belo e cheiroso e saboroso em sua disformidade. O tempo em que uma garrafa de refrigerante conseguia deixar feliz e satisfeitos a todos... e eram tantos. Houve um tempo de feliz satisfação.
Houve um tempo de contemplação, em que os sentidos se detinham durante minutos sem fim em coisas simples, como no carro que passa, na fileira de formigas seguindo indistintamente seu destino, na menina que caminha para a escola, no adulto que chama, na criança que se diverte, no silêncio do nada, na grandiosidade de tudo.
Houve um tempo de dificuldades, um tempo de grandes tristezas e pequenas alegrias. Um tempo de muitas lágrimas e poucos risos. Um tempo de ausências, de desamparo, de medo. Houve um tempo de cobranças cruéis, um tempo de palavras rudes, de atitudes impensadas.
Houve um tempo de alegrias fugazes, de passeios na carcunda do pai, do corte de cabelo num domingo de sol, de praias em outro mundo, passando por paisagens estranhas. Houve um tempo de uma quase família, ou de uma família que quase...
Houve um tempo de exemplos a não serem seguidos, mas a serem usados ao longo dos tempos. Houve um tempo de marcas, um tempo de carências, um tempo de construção e desconstrução. Houve um tempo de sonhos, um tempo de ilusões. Um tempo de realidades nuas e cruas. Houve um tempo de aprendizado, de crescimento.
Houve um tempo do colo de mãe, das batidas dos corações entrando em sincronia, dos ruídos de um mundo estranho chegando, abafados, através daquele abrigo conhecido. Houve um tempo de proteção, de amparo.
Houve todo esse tempo, um tempo que passa, um tempo permanece. Houve um tempo em que eu pensava que não haveria tanto tempo. Mas houve todo esse tempo e mais algum tempo e haveriam outros tempos, tempos que resultaram em mim.