O ovo, a galinha e a massa
Durante o jantar, conversava com minha esposa sobre a questão da saúde ou sistema de saúde. O questionamento inicial, feito por mim e que deu margem para uma explanação - talvez até desabafo - de minha esposa, uma profissional da saúde, foi a seguinte: numa analogia com o paradoxo do ovo e da galinha, o que teria surgido primeiro, os hospitais sem condições de atendimento ou os profissionais de saúde fdp (palavrão devidamente verbalizado, externando meu descontentamento com tudo que já vivi, presenciei e sofri)?
Não sou um total ignorante, como por vezes pareço, e tinha já consciência de que meu questionamento, se é que posso assim chamar a analogia feita, era reducionista. Mas o calor do momento algumas vezes turva o pensamento. Além disso, não é segredo que as duas categorias (de hospitais e profissionais) deveras existem. Seria mais um sinal de ignorância - no sentido de ignorar algo - não reconhecer.
A resposta, o desabafo, discorreu sobre questões diversas, tais como o Sistema Único de Saúde (SUS); o histórico de seu surgimento (o antes e o depois); o desprezo pelo profissional de saúde por parte dos mandatários do Estado (e mais adiante, por uns e outros motivos, por parte da população); a politicagem infelizmente sempre presente na gestão do sistema de saúde; assim como a incompetência dos gestores - que me fez pensar na em outra instituição precária, a da Justiça, que permite um ambiente de impunidade onde se encaixam esses gestores, merecedores de algemas e grades - e, por fim, mas não por último, as questões educacionais e até culturais que impactam nesse mesmo sistema de saúde, e que acabam por criar um ciclo vicioso de difícil interrupção.
Lembrei de um comentário que ouvi uma vez sobre andar na superfície (ser superficial, minimalista, reducionista) ser mais rápido e melhor do que aprofundar (analisar criticamente, aplicar o pensamento complexo, considerar vários aspectos de uma situação, de um fenômeno). E pontuando o que minha esposa expôs à mesa, frente a um mudo e todo-ouvidos Alex, comprovo o quão complexa é a questão da saúde em nossa sociedade.
SUS - o Sistema Único de Saúde é, em suma, uma boa idéia mal aproveitada. Seria algo para despertar orgulho se o próprio sistema, criado pela Constituição de 1988, não se tornasse, também, uma vítima. Sua formação, que poderia ser pautada nas melhores práticas e melhores exemplos em termos de organismos de saúde (Hospitais como o dos Servidores, no Rio, atendiam presidentes da República!), mas infelizmente o nivelamento que se pretendia, unificando o atendimento à Saúde do cidadão, foi feito por baixo. Inclusive no quesito salários dos profissionais, que, somado a falta de treinamento (mesmo aquele de base – vejam as últimas reportagens sobre o que têm entrado e saído das universidades, e vejam as próprias universidades) e o contagiante sentimento de desprezo pela sociedade, ajuda a engrossar a massa que move o ciclo vicioso.
Vez por outra surgem figuras que dizem lutar por uma mudança radical no sistema de saúde. Geralmente isso ocorre de dois em dois anos. Mesma época em que somos obrigados por lei - poucos movidos pelo ideal de cidadania e participação - a nos dirigirmos a uma urna. A mesma lei que flexibiliza a vida dessas figuras a ponto de não serem obrigados de fato a cumprirem com suas obrigações. Acontecem então visitas a hospitais, ouvem-se os lamentos de perto, sente-se o cheiro do desprezo percorrendo os corredores de instituições de saúde onde se propaga a doença (física, social, emocional, moral...). Depois disso, todo esse "barulho" feito desde antes das urnas é sobreposto por outros sons, até ser esquecido. São os sons dos programas televisivos que parecem criar uma dimensão paralela para onde muitos fogem, se abrigando da realidade dura. São os sons do consumismo que cega os olhos, tapa os ouvidos, turva os sentidos, se apresentando, talvez, com mais um caminho para uma fuga fácil. São os sons dos grandes eventos que vão muito além do que chamam cultura. São os nossos próprios sons, emitidos em nossa caminhada solitária em meio à multidão, onde ajudamos a mover a roda que compõe o ciclo vicioso. Vida de gado, como na música de Zé Ramalho. Povo marcado, povo feliz! É nesse ponto que ocorre a mais triste das etapas do ciclo. É quando a principal vítima de tudo, o paciente, atua como carrasco de si mesmo. E talvez seja a parte mais complexa de toda a tragédia social, que defendo ter começado com um projeto de Estado – a ignorância.
O paradoxo do ovo ou a galinha serviu de mote, mas reduz, como minha esposa bem apontou, uma questão nada simples. De fato é muito complexo. Complexo demais para ser exposto num simples post deste modesto blog, que tem apenas a pretensão de causar um incomodo, trocando mais essa idéia sobre... Saúde, a todos os que fazem parte dessa massa!
PS.: Fica o convite, desta vez formal e de conhecimento público, para que minha esposa escreva para este blog. Expondo o que vê em seu cotidiano, no exercício de sua função e que, somado a sua experiência de vida e seu discernimento, poderá contribuir para que tenhamos uma visão do que é o sistema de saúde.