Televisão, Cultura, Preconceito e IgnorânciaHá algumas semanas eu ouvi ou li um comentário sobre manifestações racistas no programa do Jô. Pensei: tanta coisa acontecendo nesses dias que precedem o feriado de Zumbi e Semana/Dia da Consciência Negra… Essa é mais uma, talvez invenção ou paranóia. Não procurei me inteirar e ignorei o assunto.
Hoje pela manhã, ao ler a
Folha Online, me deparo com a seguinte matéria: Ministério Público Federal investiga programa de Jô Soares. Bastou para relembrar o ‘boato’ e ter a curiosidade aguçada. Com isso, fui eu pesquisar, começando pela leitura da
matéria que comenta sobre a suposta manifestação de preconceito no programa exibido em 18 de junho deste ano (quanto tempo!) que traz uma entrevista com um tal de Ruy Moraes e Castro. A matéria traz um link para o vídeo da entrevista, disponível no
YouTube (viva a democratização!).
Confesso que assisti ao vídeo estando um tanto tenso com as acusações que estão sendo investigadas pelo MPF. Mas tentei perceber o que se passava. Primeiramente lembrando que o Jô Soares é um comediante e, mesmo em entrevistas com teor, digamos, sério, ele sempre irá adicionar uma pitada de humor. Isso é natural e esperado. E, é claro, a reação da platéia está em sintonia com as palavras e “atuação” do apresentador. Mas natural ainda.
Mas, mesmo tendo isso em mente, não fiquei contente com o que vi. Esse Ruy Castro, que até tem livros publicados, embora tenha descoberto agora, apresenta aspectos culturais de determinadas tribos africanas de forma jocosa e algumas vezes desrespeitosa. Discorre sobre questões de extrema seriedade, como a mutilação genital feminina –
MGF –, tão combatida e criticada internacionalmente. Esse aspecto assustador da cultura de algumas tribos da áfrica eu tomei conhecimento através de uma entrevista com a modelo
Waris Dirie, que li há muitos anos (Revista Reader’s Digest, acho que de 1999, quando era assinante). Fiquei bastante chocado, da mesma forma quando soube, recentemente, que em certas tribos brasileiras, crianças que nascem com deformações ou mesmo gêmeos, são sacrificadas. Cultura que, quando comparada com a dominante, se torna o que há de mais cruel. Eu considero atrocidades ambas as manifestações, pois meu referencial não é o mesmo. Assim como vejo barbárie nas ações de guerra, nos conflitos diversos onde mulheres são estupradas sistematicamente, pessoas mortas a esmo, crianças usadas como soldados, as bombas atômicas, as políticas que perpetuam a fome de muitos em prol do enriquecimento de alguns, índios e moradores de rua sendo queimados (a propósito, ocorreu novamente).
Mas continuando. Ruy Castro também aborda a sexualidade das mulheres daquelas tribos, fazendo uma associação a meu ver sem embasamento algum (quem sabe alguém me apresenta pesquisa sobre o assunto), entre o penteado e o órgão e comportamento sexual daquelas mulheres. Muitos risos, muitas opiniões controvertidas com imagens sendo exibidas. Algumas daquelas fotos eu já tinha visto, num blog de um angolano que criou uma sessão “Medusas de Angola” como forma de demonstrar, através dos penteados, a diversidade cultural daquela região. Espero conseguir a opinião daquele e de outros blogueiros africanos sobre o caso.
E se não bastasse a forma como a entrevista foi conduzida (como disse, já esperada) e a maneira Ruy Castro expõe seu “trabalho”, o entrevistado, abordando algumas tribos ao Sul Angola, indica uma região que teria fronteira com a África do Sul. Com isso, além da falta de respeito ao tratar de culturas exóticas aos “civilizados de cultura desenvolvida”, ele demonstra sua ignorância geográfica.
Li alguns comentários em sites que exibem manifestações contra o programa, algumas até com petições, repudiando o conteúdo do programa e exigindo retratação - inclusive um site de notícias Português comenta que houve
manifestação da embaixada de Angola no Brasil. Mas os comentários, muitos, ilustram o pensamento de que, os que condenam declarações e atitudes racistas ou de cunho preconceituoso com determinada cultura, são “hipócritas neuróticos de baixa estima” com “complexo de inferioridade latente”, como li num site.
As pessoas que usam essas expressões, que pensam assim, ao tentar defender uma posição e amenizar algo que foi tido por outros como insultante ao ser exibido em cadeia nacional, expressam seu próprio preconceito, sua própria intolerância quando o assunto não é de seu interesse direto. Também externam certo grau de medo. Afinal, alguém não está aprovando algo que o fazia rir.
E a essência disso tudo, me referindo ao assunto do programa, é uma: Cultura. As mulheres daquelas comunidades usam um penteado que, a nossos olhos, é mais que exótico, da mesma forma como devem considerar ao ver os “penteados da moda” a que nos acostumamos. Cultura. Mesmo a questão da mutilação genital, a meu ver, assunto que suscita um embate cultural maior e mais importante que o penteado tão comentado no programa, é uma questão cultural, de crença. Repito, não defendo a MGF, assim como abomino o sacrifício de recém-nascidos. Intolerância minha? Não creio. Simplesmente não é, e nunca foi, meu referencial.
Com relação ao programa do Jô, continuo considerando um bom programa, com aspectos positivos e negativos. Não afirmo que houve ou não manifestação racista. O que eu vi foi: desrespeito, preconceito, desperdício de tempo e, certamente, ignorância [expressa e sendo propagada]. Quatro coisas infelizmente comuns na televisão e que não deveriam se repetir. Até porque, embora seja aberta, alguém pagou para que aquilo fosse veiculado. E não se enganem, não foi a Globo nem seus anunciantes.