quarta-feira, dezembro 31, 2014

Sim, eu sou capaz

Por vezes penso não ser capaz de amar.
Até que minha mãe surge nessa equação que é a vida.
E o resultado então se apresenta de forma simples e clara.
E é único, e invariável, e exato, e inteiro e infinito:
É AMOR

terça-feira, novembro 18, 2014

Eu, um passageiro no A72077

Linha 143, Central-Gávea (via Jóquei/Praia do Flamengo), antiga linha 158. Sinceramente não sei em que a mudança de números nos ajuda. Mas os planejadores de tudo isso devem ter suas razões, talvez até científicas (sic), para tais mudanças.
 
Bem, identificada a linha, início esta sessão de postagens tipo desabafo-manifestação-protesto contra falta de humanidade, profissionalismo, consciência, respeito, noção, limites... dos motoristas de ônibus, cobradores e, claro, as empresas de ônibus. Não deixarei de lado os passageiros que se mostrem merecedores de minhas críticas (positivas ou não). E, como a maioria de minhas viagens é no trajeto casa-trabalho-casa, deverei me referir/ater a algumas das “43 empresas que operam no sistema de transporte coletivo na cidade do Rio de Janeiro”, integrantes dos quatro consórcios representados pelo Rio Ônibus.
 
A propósito, os “maravilhosos” contratos de concessão assinados em 2010 têm duração de 20 anos e "será prorrogado" por mais 20 anos! Agradeça a Secretaria Municipal de Transportes, por um pesadelo previsto para terminar em 2050.
 
O trajeto é curto, pois tenho o privilégio de morar próximo ao trabalho. Mas a distância não me isenta de presenciar, sofrer e perceber os absurdos que ocorrem. E, se tudo o que vejo acontece nos poucos quilômetros que separam meus pontos de embarque e desembarque, é possível vislumbrar o que ocorre nas viagens entre um ponto final a outro, em cada uma das viagens de cada uma dessas 43 empresas.
 
Bem, hoje pela manhã o “embarque” se deu pouco antes da 8:00. Como tantos outros pontos, o que utilizo só funciona bem na convergência de dois fenômenos: trânsito bom e motorista educado. Raridade. Logo, o motorista parou praticamente no meio da rua, manobrando para “cortar” o veículo à sua frente. Pelo posicionamento dos veículos, o espaço da calçada ao ônibus não oferecia tanto risco. Fui.
 
Ao subir, como sempre, ofereço meus cumprimentos ao motorista. Um bom dia, boa tarde, boa noite, não faz mal a ninguém. Creio já ter escrito aqui no TUIST algo sobre a reação das pessoas ao ouvirem essas palavras que por vezes parecem ser recebidas como um insulto.
 
O motorista não respondeu. Arrancou com o veículo assim que meus dois pés estavam no ônibus. Muita consideração dele.
 
A senhora cobradora, sentada lateralmente em seu “trono”, bem atenta ao trânsito à frente e pouquíssimo atenta a seu ofício, também não retribuiu o cumprimento. E, considerando que uso o RioCard, minha interação no veículo é apenas com a tal maquininha, que geralmente é muito gentil no momento em que aproximo o cartão.
 
Passei a roleta com a opinião reforçada sobre a possível e viável substituição da figura do cobrador por uma máquina, por um robô, por um sistema qualquer que interagisse com o ser humano independente da forma de ingresso (cartão, gratuidade, dinheiro…).
 
No momento em que escrevo, duas lembranças me veem a caixola. A primeira é sobre o projeto de veículo autônomo. Com certeza aquele motorista ficaria contente em não ser mais submetido aos meus cumprimentos ou a ter de parar em lugares pré-determinados para alguém atrapalhar sua viagem, seu dia, sua vida. Google, por favor, aprimore o projeto! A outra lembrança tem relação com viagem recente a dois países europeus (Portugal e França). Viajei de ônibus “comum” em ambos os países e senti a tal “vergonha alheia” pelo que os turistas passam por aqui.
 
Viagem que segue. A deselegância do motorista se fez notar ao longo do curto percurso. Acelerações e desacelerações bruscas. Possível falta de estabilidade emocional causando instabilidade no veículo e a consequente insegurança e desconforto do passageiro. E tudo isso num bate papo indispensável e constante e animado com a cobradora, mostrando que a equipe é unida e jamais será vencida por aqueles que, por sua natureza, estão ali só de passagem.
 
O nível do serviço prestado pelas empresas de ônibus é muito baixo. Seus funcionários, em sua maioria, não estão preparados para lidar com o público. Não entendem – talvez porque até agora não os interessa – seu papel perante a sociedade, no sistema de transporte público e perante os seres humanos que atende. Tenho certeza que o lucro aferido pelos empresários do setor é de alto nível, permitindo que eles e os seus não precisem se submeter aos constantemente constrangimentos que sofrem os passageiros.
 
Termino esse primeiro relato, alongado com informações além da viagem em si, respondendo a pergunta timidamente exibida nos veículos: como estou dirigindo?
 
Mal, muito mal.
 

The Touré-Raichel Collective - Le Niger (LIVE)


quinta-feira, outubro 16, 2014

Estudar

"Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo.
Não posso abrir-lhe outro mundo de imagens, além daquele que há em sua própria alma.
Nada lhe posso dar a não ser a oportunidade, o impulso, a chave.
Eu o ajudarei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo."

Herman Hesse

domingo, outubro 12, 2014

domingo, setembro 21, 2014

Homo tecnologicus

Um artigo publicado ontem no El Pais reflete sobre a dependência cada vez maior que temos da tecnologia. O texto, Hacia el ‘homo technologicus’, que apresenta a obra de Nicolas Carr sobre o assunto, me fez lembrar de uma história que ouvi há uns 15 anos.

Quando atuava como técnico de telecomunicações, prestei serviço para Docenave, companhia de navegação da Vale do Rio Doce. Um dos comandantes da frota tinha uma prática muito interessante durante as viagens. Segundo ele, nos períodos de calmaria, geralmente à noite, reunia parte da tripulação no passadiço para uma aula de navegação com o uso do sextante (instrumento utilizado para calcular o posicionamento global na navegação estimada). Ele dizia que não podiam ficar tão dependentes dos equipamentos tecnológicos, principalmente nas viagens de longo curso (aquelas para Ásia, por exemplo).

Acho que ainda não nos demos conta da problemática envolvendo o que Carr chama de complacência automatizada.

quinta-feira, setembro 04, 2014

Racismos brasileiros

No Brasil, além do racismo velado, temos o racismo embalado e o térmico. Um, feito "no embalo da torcida"; outro, "no calor do momento".

quarta-feira, agosto 20, 2014

Para ela, qualquer um serve

Em tempos de eleição, quando muitos estão refletindo e analisando em quem votar, seja para presidente, seja para governador ou deputado na esfera estadual e federal, algumas coisas nos (me) fazem refletir.

Estava eu hoje na Avenida Rio Branco, no Centro do Rio, aguardando o ônibus para o retorno ao lar após mais um dia de trabalho. Eu e muitas pessoas. Com a implantação dos corredores exclusivos para ônibus, chamados BRS, em algumas regiões, com ali no Centro, existem pontos específicos para cada grupo de ônibus. Eu utilizo o BRS1 e, por isso, estava ali aguardando ônibus desse grupo.

Havia uma senhora que possivelmente não estava acostumada com essa reestruturação na logística do transporte público do Rio. Seu destino: Copacabana. São vários os ônibus que a atenderiam. Porém, vale lembrar que Copacabana é uma região onde também foi implantado o sistema BRS. Logo, pontos certos de parada.

Ela abordou um desses veículos e perguntou ao motorista se ele “poderia parar” na esquina de determinada rua onde, ficou claro, não era ponto de ônibus, muito menos ponto daquele BRS. O motorista explicou esse “detalhe” e informou que o ponto não ficava longe de onde ela queria saltar.

Ela recusou e preferiu tentar conseguir o “favor” de outro. Alguém que talvez estivesse em companhia dela, argumentou a razão da recusa. Ao que ela respondeu: “Esse não presta, só para no ponto”.

A declaração pode parecer simples. E talvez até seja. Mas nada tem de inocente quando “transportamos” isso para questões diversas da vida em sociedade. Principalmente, como relatei no início, nas questões eleitorais.

Explico melhor com uma analogia que se formou em minha mente conturbada quase que automaticamente.

Para o Governo do Estado do Rio de Janeiro concorrem políticos que deixaram marcas de inépcia, má administração, uso indevido do cargo público dentre outras cicatrizes nas áreas pelas quais infelizmente estiveram. Muitos, como eu, ficam na dúvida não sobre qual é a melhor opção, mas qual é a menos danosa. Eu, sinceramente, considero que todos estão bem nivelados no quesito incompetência.


Para aquela senhora, no entanto, qualquer uma das opções serve. Não fará diferença. Todos a deixarão fora do ponto, como ela tão deseja.

domingo, agosto 10, 2014

Na cacunda de meu pai

Sou um saudosista incorrigível. Com a consciência de que o tempo passa para todos. O mundo de ontem só existe em minhas memórias. Risos e lágrimas. Lembranças doces e amargas. As mais antigas delas são do primeiro tipo. Lembro-me de estar no colo de minha mãe, recebendo os sons do mundo através de seu peito, no ritmo de seu coração. E lembro-me também de estar na cacunda de meu pai, sentido sua barba e seu cabelo, tenho a certeza de estar num local seguro, vendo a grandiosidade do mundo lá de cima. Lá se vão mais de três décadas.

Os sons do mundo não são mais filtrados pelo peito de minha mãe. E o ritmo com que chegam nada lembra a cadência das batidas de seu coração. A aspereza não é mais a da barba de meu pai. E parece não haver mais local seguro num mundo que se mostra cada vez mais mesquinho e pequeno. O tempo passa.

Ontem eu tive a alegria de reencontrar uma pessoa que fez parte de minha infância. Uma vizinha que se mostrou tão genuinamente feliz ao me rever quanto eu ao revê-la. Foi um momento feliz, com lembranças felizes. Em determinado momento ela me fez uma pergunta interessante, embora não tenha sido a primeira vez que a ouço. Começo pela resposta: não existe.

A não existência de algo pode ser intrigante. Ainda mais quando esse algo é tão básico e natural para tantas pessoas. Ou pelo menos deveria ser. A pergunta foi: como é a relação com seu pai?

Hoje é dia dos pais. Como sempre, a exploração comercial da data começou com a devida antecedência de semanas. A tortura também.

Não encaro muito bem essas ocasiões. As mais de três décadas não me tornaram o que chamam de uma “pessoa preparada”. A distância que se criou é grande demais. Se houve mágoa, talvez hoje não seja a causa. É um dia triste.

Mas a memória é algo incrível. Algumas vezes serve como ferramenta de resgate que ultrapassa a barreira do tempo e do espaço. Posso desejar um feliz dia dos pais, com sinceridade, a meu pai. E posso, também, desejar um feliz dia dos pais a minha mãe, pois acumulou a função durante muitos anos.


E posso me recordar daquele mundo de outrora, visto de cima, na cacunda de meu pai.

domingo, maio 18, 2014

Minha família

Quem disse não nos conhece

♥ E quem disse que não rimos
♥ E quem disse que não choramos
♥ E quem disse que não choramos de rir
♥ E quem disse que não rimos após o pranto

♥ E quem disse que não nos abraçamos
♥ E quem disse que não brigamos
♥ E quem disse que não abraçamos uma briga
♥ E quem disse que não brigamos por um abraço

♥ E quem disse que não nos amamos
♥ E quem disse que não vivemos
♥ E quem disse que não amamos viver
♥ E quem disse que não vivemos amando

♥ E quem disse que não festejamos
♥ E quem disse que não dançamos
♥ E quem disse que não nos lembramos

♥ E quem disse que não velamos
♥ E quem disse que não rezamos
♥ E quem disse que disso não lembramos

♥ Disso tudo que é a vida
♥ Quem em família... rimos
♥ E choramos
♥ E abraçamos
♥ E brigamos
♥ E amamos
♥ E vivemos
♥ E festejamos
♥ E dançamos
♥ E velamos
♥ E rezamos
♥ E nos lembramos
♥ Disso tudo que é a vida ♥


♥ Dedicado a minha família

sexta-feira, abril 11, 2014

Obstáculos anti-maravilha

É uma aventura, por vezes perigosa, andar pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro.

Temos de desviar de buracos, nas calçadas malcuidadas, desniveladas e construídas porcamente. Rasgadas pela proposta de progresso que tenta se implantar sem a devida ordem.

Temos de desviar do esgoto que aflora das entranhas velhas da cidade, construída para suportar uma pequena parte do que hoje é lançado em seu agonizante e desatualizado sistema.

Temos de desviar de obras, algumas que parecem intermináveis, outras que surgem no pacote das promessas para os eventos tão aguardados.

Temos de desviar do trânsito, cada vez mais caótico e que muda a cada realocação de cones e posicionamento dos tantos auxiliares desinformados que ali estão. Despreparados, mal treinados, mas empregados, cumprem uma carga horária para empresas terceirizadas, contratadas pelos nossos prestimosos governantes em tenebrosas transações.

Temos de desviar dos vendedores ambulantes, que tomam conta das calçadas, armazenando e vendendo todo tipo de mercadoria. Algumas vezes de forma sazonal, outras de modo permanente. Algumas vezes em hordas migratórias, buscando o melhor ponto de venda ou o horário mais adequado, acordado e conhecido, para não serem “incomodados” pela Guarda Municipal (omissa, conivente, inerte e despreparada).

Temos de desviar de nossas misérias, que se materializam na forma de tantos seres humanos vivendo como animais, em condições degradantes e que têm nas ruas do Rio sua casa, seu terreno, sua cama e sua latrina.

Temos de desviar dos que pedem. E são tantos. Uniformizados ou não, organizados ou não. Alguns com crianças, alguns com pranchetas. Alguns daqueles com crianças, explorando criminosamente o que seria nosso futuro. Aqueles com pranchetas, vestindo camisas de diversas instituições, se multiplicam e se revezam numa abordagem inconveniente e inoportuna.

Temos de desviar dos que tomam. Crianças, adolescentes e adultos, respaldados pela inércia das autoridades, pela ineficiência de nossa legislação e pela incompetência de nossos gestores. Roubam de cabeça erguida, arrogantemente subtraindo nossos bens e nossa paz e nossa liberdade, adicionando a desconfiança e o medo, dividindo sua desesperança e multiplicando a violência.

Temos de desviar do irritante efeito externo dos milhares de aparelhos de ar-condicionado que foram instalados sem obedecer a Lei existente, que discorre sobre o gotejamento externo, e que não é cumprida, não é exigida, não é respeitada. Como tantas outras, a LEI N.º 2.749 DE 23 DE MARÇO DE 1999 simplesmente não pegou.

Temos até mesmo de desviar dos que desviam, das pessoas que parecem caminhar seguindo a sinuosidade dos desenhos das maltratadas calçadas portuguesas, das pessoas que seguem egoistamente seus caminhos tendo como horizonte a tela de seus celulares.

E, por fim, infelizmente estamos desviando nosso olhar dos numerosos e centenários monumentos, das paisagens que tanto encantam o mundo, registradas em cartões postais e em nossa memória (os que têm a sorte de pelo menos em memória guardar tais imagens).

O Rio de Janeiro continua lindo. Mas são muitos os obstáculos que nos impedem de ver tamanha beleza.

terça-feira, março 04, 2014

Incomodo.doc - racismos, preconceitos, blábláblás e confusões

Mais uma vez esse assunto. Talvez, quem sabe, um dia isso vire tema exclusivamente dos livros de história, iguais aos que jazem empoeirados nos velhos sebos. Por enquanto, infelizmente, faz parte do cotidiano de muitos. Alguns percebem, outros não. Algumas vezes ganha repercussão, com grande estardalhaço, pitadas de sensacionalismo, a turma dos “movimentos”, a galera do “deixa disso”, capas de jornais e revistas, reportagens especiais, blábláblá… até que surge algo mais “quente” e bola pra frente, vamu-qui-vamu, vira a página. Mas o assunto continua. Em outro lugar, com outro alguém.

Há muito tempo que não escrevo. Já escrevi sobre esses “hiatos”, sobre esse negócio de “não escrever”. Não vou me alongar nessas explicações. Hoje, porém, depois de alguns tweets, vejo um arquivo na área de trabalho. O nome: Incomodo.doc. O conteúdo tem quatro linhas:

Incomodo* 
    Elevador
        Zona sul
            Racismo

(*) por isso o nome do arquivo, atribuído automaticamente e aceito~

O arquivo data, como vejo depois de iniciar o texto, de Novembro de 2013. Tenho essa mania de, quando dá vontade de escrever (desabafar em palavras) e não tenho tempo nem inspiração, faço anotações simples, seja em arquivos, seja em e-mails salvos a seguir em rascunho, poucas vezes em papel. Algumas vezes descarto, outras vezes dou continuidade ao projeto. Neste caso, após muitos meses, cá estou tentando concluir. Vamos lá.

Sou negro, como podem ver pela foto do perfil. Uma característica que poderia passar despercebida considerando que vivo num país miscigenado, num Estado com uma população negra relevante, blábláblá.
Mas eis que essa característica simples assume uma relevância absurda quando percebida num ambiente onde sua predominância é baixa, onde não é “esperada” (por alguns, sequer aceita). Tal como um golfinho ou uma baleia quando aparecem numa praia da Zona Sul, quando o fato ganha repercussão uma vez que tais seres estão afastados de sua área (não de seu habitat, pois é o mar). Estão onde não se espera que estejam. São observados, analisados.

Embora não por ser mamífero, também sou observado e analisado, talvez com mais atenção, ao dividir o elevador (aqui mesmo no prédio onde moro) ou ao entrar em estabelecimentos comerciais da região (Supermercado Zona Sul e Hortifruti, por exemplo).

A primeira anotação feita neste arquivo de Novembro de 2013 foi “incomodo”, na forma verbal, primeira pessoa do singular, pois é isso mesmo que percebo: EU incomodo. Um mamífero de pele escura num bairro predominantemente de mamíferos de pele mais clara causa estranheza em muitos mamíferos.

As pessoas mal disfarçam seu incomodo no elevador, por exemplo. Algumas vezes, até me dão privilégio da exclusividade, ao se negarem a adentrar, recusando a gentileza mais que humana daquele tempinho que um mamífero passa “segurando” a porta do elevador para o outro mamífero.

Nos estabelecimentos, notoriamente os citados acima, conto com a prestimosa atenção dos seguranças (alguns à paisana) que me acompanham por cada corredor, cada gôndola. Como declarei recentemente num tweet para o Supermercado Zona Sul, seria patético se não fosse cruel (não encontrei melhor palavra para, naquele momento, exprimir o que sentia).

O absurdo assume certas características por vezes curiosas, por vezes cruéis e/ou essencialmente criminosas. É que o incômodo, muitas vezes gera confusão.

O raciocínio de certa forma é até simples. Sendo um ambiente onde a predominância é de mamíferos de pela clara, um mamífero de pele escura pode assumir um comportamento distinto. Algo excepcional. Afinal, o que ele estaria fazendo “fora de seu habitat”?

Muitas vezes, na rua, em restaurantes, bares ou outros estabelecimentos, eu sou confundido (ou simplesmente relacionado, pela aparência) com algum artista ou jogador de futebol. É interessante, confesso. Mas, não posso dizer que me sinto bem. Estando ou não satisfeito, sou o que sou, e não gosto quando me atribuem, para o bem ou para o mal, algo diferente (seja por ignorância, seja por conceitos pré-concebidos).

Em outras vezes, a maioria na verdade, a confusão é outra. O estereótipo do criminoso, do bandido, do vagabundo, parece se formar nas mentes de seguranças, de porteiros, de policiais, de atendentes, de pessoas comuns, mamíferos com diferente nuances de pele, seja mais clara ou mais escura. E a atenção que me é dispensada se torna incômoda, restritiva, constrangedora, humilhante, cruel, desumana.

Com alguns outros mamíferos de pela escura, além de tudo isso, a “atenção” se torna violenta. Há poucos dias veio à tona a notícia, então quente (clique aqui, tem um vídeo interessante, aqui também), de um mamífero de pele mais escura que foi preso e ficou encarcerado durante mais de duas semanas por ser confundido (olha a confusão aí gente! chora... por que é triste) com um assaltante. A "confusão", me fez lembrar um episódio de um seriado americano:


Racismo versus preconceito. Racismo não existe, somos uma só raça, blábláblá. Ah, mas falamos em racismo num contexto histórico-sociológico e não genético-biológico blábláblá. Ah, mas ninguém no Brasil pode se dizer negro ou branco, dada a intensa miscigenação ao longo da história blábláblá. Ah, mas eu não tenho preconceito, meu melhor amigo é negro, meu namorado é negro, minha namorada é negra, minha mãe/pai é negro, o tio-avô da minha prima de segundo grau é negro, eu sou negro blábláblá.

São tantos livros, tantas pesquisas, tantos artigos, tantos seminários, congressos, simpósios, tantos encontros, tantos documentários, tantos filmes, tantos programas, tantos gráficos, tantas estatísticas, tantas comparações, suposições, afirmações e negações, tanta história, tanta biologia, tanta sociologia, tanta genética, tanto blábláblá…  que vamos nos afastando da simples realidade.

Ser preterido no atendimento ou perseguido em estabelecimentos comerciais, ser evitado em elevadores, ser confundido com famoso ou com bandido, ser preso… ser morto. O ser negro incomoda muita gente. Ser negro pode causar muita confusão.

domingo, fevereiro 09, 2014

'Eu, não, meu senhor'

"Não há exemplos na História de se ter conquistado a segurança pela covardia."

Transcrevo abaixo (parte de) um texto do professor José de Souza Martins, publicado ontem no Estadão a respeito da barbárie, aplaudida por alguns, ocorrida no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro.

Era de noite. Foi no Flamengo. Trinta marmanjos chegaram em 15 motos. Os quatro adolescentes caminhavam para Copacabana, "para tomar um banho de mar". "Era (um) fortão e tinha um magrinho. O magrinho já chegou jogando a moto em cima. Vou matar! Vou matar os quatro!" A moto e a enturmação fizeram o magrinho ficar fortão e valente. O magrinho foi acusando: "Bando de ladrão, fica roubando bicicleta dos outros". Três dos garotos conseguiram fugir. O menino de 15 anos, não. Nenhum deles estava de bicicleta.
Desde quando seus antepassados foram trazidos da África, empilhados em navios negreiros, para serem vendidos no Valongo depois de estirados na praia para destravar o corpo, o menino negro sabe quem manda e quem obedece. O tronco e a chibata no lombo de seus antepassados surraram também sua memória e lhe ensinaram as lições que sobrevivem 125 anos depois da liberdade sem conteúdo da Lei Áurea. A lei que libertou os brancos do fardo da escravidão antieconômica. Mais de um século depois, o menino ainda sabe como é que se fala até mesmo com moleque que herdou os mimos da casa-grande: "Eu não, meu senhor, todo mundo aqui é trabalhador", defendeu-se.
Esse menino descende de homens livres há mais de um século. Mas a chibata ficou lá dentro da alma, ferindo, dobrando, humilhando, criando desconfiança, ensinando artimanhas de quilombo para sobreviver. Esse "meu senhor" diz tudo, fala alto, grita na consciência dos que a tem. Esse "meu senhor" desdiz a liberdade, desmente a Lei Áurea, nos leva de volta aos tempos da senzala, do tronco e do pelourinho. Esse "meu senhor" expressa uma liberdade não emancipadora, que não integrou o negro senão nas funções subalternas de uma escravidão dissimulada, mas não na ressocialização para a liberdade e para a cidadania. Quem acusa o menino não sabe que a sociedade não pode colher o fruto que não semeou.
No dia 13 de maio de 1888 não libertamos ninguém. Continuamos todos escravos da escravidão que não acaba, da moral retorcida que nos legou, da consciência cindida que nos faz crer que somos uma coisa sendo outra. No mundo novo da liberdade abstrata de um contrato fictício não podemos nos encontrar porque não encontramos o outro, não podemos ser livres porque não nos libertamos no outro, não podemos ter direitos de que os outros carecem.
O menino levou uma surra de capacetes. "Bateu, bateu", disse ele a uma repórter. Desmaiou. Foi ferido a faca na orelha. Com uma trava de bicicleta, foi amarrado pelo pescoço num poste. Coisa de gente muito valente, coisa de macho: 30 homens contra um menino franzino. E na Câmara dos Deputados houve quem se orgulhasse disso. Confessou um deputado mais inclinado ao justiçamento do que à Justiça: "Praticou um ato corajoso quem deu uma surra nesse vagabundo, porque os moradores estão cansados de serem roubados e assaltados por essa gentalha". Isto é, gentinha, populacho, ralé. O mesmo tratamento que tinha vigência antes da lei do 13 de Maio, quando o escravo era considerado coisa, semovente, mercadoria, um ser abaixo da condição humana. Mero animal de trabalho, com a diferença de que das azêmolas diferia porque falava, gemia, chorava, sabia. (...)
Leia o texto na íntegra clicando aqui.
A quem interessar, o tal Deputado (Federal) chama-se Jair Bolsonaro.

A menina no mercado

Havia uma menina no mercado. Devia ter uns 12 anos. Talvez menos. Estava atrás de mim no caixa. Tinha dois pacotes de macarrão instantâneo n...