Sou um saudosista incorrigível. Com a consciência
de que o tempo passa para todos. O mundo de ontem só existe em minhas memórias. Risos
e lágrimas. Lembranças doces e amargas. As mais antigas delas são do primeiro
tipo. Lembro-me de estar no colo de minha mãe, recebendo os sons do mundo
através de seu peito, no ritmo de seu coração. E lembro-me também de estar na cacunda
de meu pai, sentido sua barba e seu cabelo, tenho a certeza de estar num local seguro,
vendo a grandiosidade do mundo lá de cima. Lá se vão mais de três décadas.
Os sons do mundo não são mais filtrados pelo peito de minha mãe.
E o ritmo com que chegam nada lembra a cadência das batidas de seu coração. A
aspereza não é mais a da barba de meu pai. E parece não haver mais local seguro
num mundo que se mostra cada vez mais mesquinho e pequeno. O tempo passa.
Ontem eu tive a alegria de reencontrar uma pessoa que fez
parte de minha infância. Uma vizinha que se mostrou tão genuinamente feliz ao
me rever quanto eu ao revê-la. Foi um momento feliz, com lembranças felizes. Em determinado momento ela
me fez uma pergunta interessante, embora não tenha sido a primeira vez que a
ouço. Começo pela resposta: não existe.
A não existência de algo pode ser intrigante. Ainda mais
quando esse algo é tão básico e natural para tantas pessoas. Ou pelo menos deveria ser. A pergunta foi:
como é a relação com seu pai?
Hoje é dia dos pais. Como sempre, a exploração comercial da
data começou com a devida antecedência de semanas. A tortura também.
Não encaro muito bem essas ocasiões. As mais de três décadas
não me tornaram o que chamam de uma “pessoa preparada”. A distância que se
criou é grande demais. Se houve mágoa, talvez hoje não seja a causa. É um dia
triste.
Mas a memória é algo incrível. Algumas vezes serve como
ferramenta de resgate que ultrapassa a barreira do tempo e do espaço. Posso desejar um
feliz dia dos pais, com sinceridade, a meu pai. E posso, também, desejar um
feliz dia dos pais a minha mãe, pois acumulou a função durante muitos anos.
E posso me recordar daquele mundo de outrora, visto de cima,
na cacunda de meu pai.
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