Já reparam como são bonitos os dias de concurso público? Quase
sempre tendo uma noite anterior enluarada e quente, com várias propostas de
cerveja e outras tentações que terminam tarde da noite, ou pela manhã, levando
suas forças e sua disposição e, no lugar, deixando um dor de cabeça
persistente, e sono, muito sono. Geralmente são dias de sol, de céu azul… Bem
convidativos para uma praia, uma caminhada, um churrasco… um chopp. Sabe como é…
uma coisa leva a outra. Tudo, menos ficar uma manhã ou, algumas vezes uma manhã
e uma tarde, numa sala com pessoas que (verdade seja dita e pelo menos naquele
momento) não querem o sucesso uma das outras. Além disso, mais que candidato,
você é suspeito. Por isso mesmo, será atentamente observado, seus movimentos
serão acompanhados de perto por várias pessoas.
Hoje foi um desses domingos. Com certeza deu praia. Como me
preservei na noite anterior, eu acordei cedo e fui concorrer a uma vaga, ou melhor,
a uma possível vaga (o malicioso cadastro de reserva) numa empresa pública.
Se no mundo “normal” as pessoas encontram amigos num dia de
sol, seja na praia, no parque, na rua, num bar, no mundo dos concursos não é
diferente. É comum ouvir “só assim nos encontramos…”. Pessoas que não se veem
desde os tempos da faculdade se esbarram nos corredores das instituições onde
ocorrem as provas. Aí é uma festa, claro. Momento para descontrair, fazer
piada, saber da vida um dos outro, fofocar, saber do mercado, das expectativas,
das perspectivas, das novidades.
Outra pergunta bem típica nessas ocasiões é “e aí, você
estudou?”, geralmente seguida de respostas como “estudei nada!” ou “só dei uma
lida” ou “pô, trabalhando direto, só vim porque paguei”.
São comuns também as brincadeiras ácidas, como quando um
colega deseja que você “passe mal durante a prova”, ou outro que coloca o pé na
sua frente (claro, de modo que você veja) e te olhe rindo e pergunta “diminuindo
a concorrência, né?”. Ou ainda aquele cumprimento afável “que pena te ver por
aqui”.
É um dia interessante. Peculiar.
Hoje não foi diferente. E, ao me deparar com situações tão
comuns nesses dias, não pude deixar de recordar os concursos idos.
Falarei um pouco sobre as situações. E foram tantas
situações…
É sempre bom ter algo para comer durante a prova. Comer e
beber. Afinal, a maioria das provas tem duração de quatro horas, talvez mais. E
o preparo físico faz parte da prova. É eliminatório. Eu costumo levar uma
fruta, mas é raro. Tenho o péssimo hábito de não comer entre o café da manhã e
o almoço. Hoje, por exemplo, não levei nada. Comprei água pouco antes de entrar
no local. Opa, um parêntese… No momento da compra eu ouço “água se traz de casa”.
Grata surpresa. Uma colega de faculdade. Os minutos seguintes foram de
atualizações.
Mas voltando aos comes e bebes… Muitas pessoas levam
biscoitos, refrigerantes, e outras guloseimas. Toda bebida, claro, representa
um risco imediato. Molhar o cartão resposta não é algo que se almeja. Não para
si, hehehe. Mas o biscoito é uma arma (guardem essa palavra), talvez, ainda
mais perversa. Ter o silêncio sepulcral da sala maculado pelo som da destruição
de substância alimentícia ao ser esmagada por “uma estrutura dura, saliente e
esbranquiçada composta por polpa, dentina e esmalte” é algo que abala os nervos
e compromete o raciocínio (ou divagações) durante a prova. Hoje um colega me
proporcionou um desses momentos. Ponto pra ele.
“O inferno são os outros”. Talvez Sartre tenha feito alguma
prova de concurso público. Assim como a alimentação alheia, naquele momento,
pode significar seu fracasso (hoje eu tô dramático), o movimento alheio também pode
ter esse efeito.
Se existe algo que me apavora nessas provas é a proximidade
das carteiras e o tráfego indiscriminado de meus arqui-inimigos momentâneos, “os
outros”. O nervosismo deveria se expressar por sono profundo, desistência pura
e simples ou mesmo paralisia momentânea (além de dramático, cruel). Mas o que
se vê são espasmos musculares, mudanças abruptas de posição, sessões de percussão
onde pés, mãos, canetas viram instrumentos musicais desritmados. Além, é claro,
do funcionamento indisciplinado do sistema urinário.
Nesses momentos, cuidado! Esses “outros” passarão bem
próximo de você, esbarrarão em você com o intuito inconsciente (ou não… lembrem:
eles são “os outros”) de derramar aquela garrafa d’água que você, imprudentemente,
deixou em cima da carteira. Ou, mais comumente, essa colisão ocorrerá no exato
momento em que a ponta de sua caneta esferográfica de tinta preta e de material
transparente estiver em contato com a superfície do documento único e
insubstituível onde você deve marcar as respostas. Isso já ocorreu comigo.
Os outros. Já reparam como algumas pessoas “acabam” a prova
em tão pouco tempo? Hoje, por exemplo, uma menina que chegou esbaforida, em cima
da hora, e falando com alguém sobre ter ido de bicicleta (imprudente gasto
energético pré-prova), entregou a prova menos de uma hora após o início. Não dá
tempo! É quase impossível! Mas, o irracional, tão presente, nos diz “Tá vendo? Ela
já acabou! E você, seu lerdo, nem chegou à segunda página! Anda logo com isso,
seu bocó!”. Logo, hoje desenvolvi uma teoria esdrúxula: essas pessoas
irritantes são contratadas por algum dos “outros” para desequilibrar mental e
emocionalmente os demais.
Bem, eu posso não ler o edital (aliás, isso é raro, se é que
li por completo alguma vez), mas existem instruções básicas para a realização
de uma prova. E a mais básica é: caneta esferográfica de tinta preta e de
material transparente. E pode apostar, sempre haverá alguém que, já na sala,
reagirá com surpresa a esse detalhe. E hoje não foi diferente. O “outro”, uma
menina, não esqueceu o creme com que lambrecou displicentemente as pernas
(preparo para a prova?), mas ficou espantada com a observação da “caneta esferográfica
de tinta preta e de material transparente”.
Aliás, essa exigência me faz lembrar a sagacidade de nossos
vendedores ambulantes. São mais bem informados que muitos concurseiros. Já nos
acessos ao local das provas sempre haverá um alertando sobre a “caneta esferográfica
de tinta preta e de material transparente” e, claro, ofertando a mercadoria.
Esse fenômeno também pode ser observado naqueles dias que não parece que vai
chover (e você está desprevenido, claro) e cai aquele toró. Logo haverá alguém
vendendo “familhão” por 10 reais. Ou, durante o carnaval, caso queiram saber
onde será o bloco, siga o camelô empurrando um carrinho de cerveja. Mesmo
princípio.
Mas, continuando…
Os “outros” podem estar armados. Cuidado!! É isso mesmo.
Armas. E não falo de biscoitos crocantes dessa vez. Numa prova recente, num
domingo de sol, lá pelas bandas do Méier, me surpreendi (rindo, incrédulo) com
a pergunta da fiscal de sala para a turma, durante os avisos iniciais: “Pessoal,
alguém está portando arma?”. A formalidade foi esquecida nesse momento e
perguntei sobre aquele questionamento, novidade para mim. Ela sentou e, como
havia tempo para o início, contou a história inusitada. Disse que, durante um concurso
organizado por aquela instituição, um homem foi surpreendido durante a revista na
saída do banheiro (para quem não sabe, o uso de detector de metais é regra)
com… pasmem… três (isso mesmo, 3) armas. Devidamente presas em coldres espalhados
pelo corpo, inclusive um na canela. Detalhe: ele não era policial. Mais detalhe:
justificou-se dizendo que era para se proteger, pois era uma área de risco e
coisa e tal.
Bem, o único risco ali (além dele, claro) era ser reprovado.
Um risco ao qual, obviamente, ele sucumbiu. Devidamente desarmado, ao ser
expulso do local.
Continuemos…
Os rituais. Ah, essa é outra parte interessante desses
domingos de sol. Cromoterapia pura e aplicada (o amarelo ajuda) é um exemplo. Leituras
antes da prova são frequentes. Eu, no caminho, estava lendo um romance. Algumas
pessoas levam apostilas e resumos, que só guardam no último segundo.
Alongamentos, exercícios respiratórios… Preces são comuns. Afinal, entre a
bibliografia proposta mais o catatau de legislação exigida… bem, apelar ao
divino parece ser mais rápido. Por falar no divino, um dos momentos mais marcantes
desses anos de concurso público foi durante o vestibular. Acho que foi numa
prova da UFF. O local eu lembro bem, Colégio Zaccaria, no Catete. Estava
sentado próximo à janela, senti um cheiro diferente, mas só me virei para
conferir quando houve um zum zum zum e o fiscal da sala se aproximou para
advertir um rapaz. Razão: um sujeito, meio bicho-grilo, havia fixado e acendido
um incenso na carteira a sua frente e estava em posição de lótus meditando. Acreditem.
Isso ocorreu. Eu estava lá. Quem deve se lembrar bem é a menina da carteira
onde o incenso foi fixado. Eu não esqueço a expressão de incredulidade e ódio
dela cheirando próprio cabelo (cabelos longos!), claro, devidamente defumado.
Não preciso dizer que esse “evento” desconcertou boa parte da turma (a menina,
principalmente).
Não sucumbi ao ataque desse “outro” zen. Passei para a UFF!
É. Esses são os concursos nossos de cada domingo. Domingos
de Sol. Nossos e, claro, dos “outros”.