segunda-feira, novembro 05, 2012

Mauritânia - Escravidão não abolida


Há alguns anos eu assisti uma reportagem sobre a escravidão num país africano. Mauritânia. Lembro que a aberração foi contextualizada culturalmente. Não exatamente para explicar a situação de tantos seres humanos subjugados por essa “prática” deplorável, mas talvez para não criminalizá-la (digo isso pelas repetidas citações da palavra “cultura” e suas variações). E realmente confusa essa relação, por vezes paradigmática, contraditória, entre o que seria [aceitável e admissível] cultura e o que seria considerado crime, crueldade, desumanidade [logo, inaceitável e inadmissível].

Já disse aqui no TUIST e repito que, nesse espaço, eu lanço meus preconceitos, minhas verdades efêmeras, transitórias, algumas vezes minhas fraquezas, minhas dúvidas, minhas inseguranças. Mas também minha raiva, meus desconfortos, minhas agonias.

Assinei a Rider’s Digest durante alguns anos e a matéria que mais me marcou foi a história de Waris Dirie, modelo Somali (linda!) que contou em primeira pessoa o que passou quando criança, como vítima da circuncisão feminina (mutilação) praticada em sua tribo. Cultura aos olhos de quem? Crueldade aos olhos de quem? Fiquei chocado e até hoje é difícil aceitar a prática como algo admissível. É cruel, abominável, triste. Preconceito de minha parte? É.

Pois bem, voltemos à Mauritânia.

Há alguns dias li um artigo (pode ser lido também aqui) de Abda Wone no The Africa Report  entitulada “Mauritania: Enslaving Africans in Africa in 2012” (Mauritania: Escravizando Africanos na África em 2012). O título, por si só, já gera um desconforto (no mínimo). Wone não está denunciando um grupo criminoso; não está relatando um caso isolado; tampouco está fazendo alusão a algo no passado. Ele fala de um país: a Mauritânia; de algo hediondo: a Escravidão; que está ocorrendo neste momento, “enquanto você lê este artigo”.

Abaixo, segue uma tradução que fiz do artigo. Segundo um dos autores citados por Wone, a persistência da prática escravista naquele país (de certa forma institucionalizada) é a o fato de um mundo ignorar aquela situação. Fica a questão, ignorar no sentido de “deixar prá lá”, “não é comigo”, “não to nem aí”, ou ignorar no sentido de desconhecer. Para ambos os casos, é importante que nos informemos.

Mauritania: Escravizando Africanos na África em 2012
Abda Wone

Para melhor compreender a Mauritânia, deve-se entender que a escravidão foi abolida três vezes! A quarta abolição da escravatura ainda está para ser anunciada uma vez que a prática generalizada no país continua inabalável.

A primeira abolição no país da África Ocidental foi colocada no papel em 1905, quando colonizado pela França.

A segunda, como resultado de uma continuidade da prática, era para ser aplicada quando a Mauritânia se juntou à Organização das Nações Unidas (ONU). Mas essa lei abolicionista era tão ambígua que apenas deu a entender que a prática seria proibida pela Constituição. Não naquele momento, mas em uma data futura!

As próprias classes que estão no comando das leis são as mesmas que se beneficiam com a escravidão, e o regime continua explorando os cidadãos considerados como "escravos". Não há sinais de que as autoridades sejam sinceras quando falam de liberdade, seja de pensamento, de movimento (de ir e vir) ou econômica.

Consequentemente, alguns negros, conhecidos como "Negro-mauritanos", ainda são possuídos como escravos pelos ricos senhores árabes, que apesar de serem Africanos preferem ser chamados de Árabes.

Então, essa é a luta em 2012 para libertar os escravizados na Mauritânia em uma sociedade moderna.

Estamos em 2012, numa sociedade moderna, e ainda luta-se na Mauritânia para libertar os escravizados.

A consciência política pré-histórica é tamanha que Birame Ould Dah, um abolicionista Mauritano, líder da Iniciativa para o Ressurgimento do Movimento Abolicionista (sigla do original, IRA-Mauritanie) está detido desde abril 2012.

Birame foi acusado de queimar obras acadêmicas muçulmanas, enquanto insistia que seus autores justificam a prática de escravatura na Mauritânia, por força do Islã. Opiniões nacionais e internacionais associam a prisão de Birame a seu ativismo antiescravidão e sua luta para informar o mundo sobre o que está realmente ocorrendo em seu país, Mauritânia.

A prisão de Birame não cumpre nem mesmo as normas concebidas para animais abandonados quando levados para o abate e não é surpresa sua vida estar em perigo devido a sua condição de saúde. Uma condição imposta pelas mesmas autoridades que em três ocasiões proibiram a prática que Birame os lembra ainda existir.

Sudão e Mauritânia, onde os negros e os chamados árabes coexistem no mesmo espaço geográfico, há muito tempo estão no negócio de escravidão.

Dr. Samuel Cotton, autor da obra-prima "O Terror Silencioso: uma jornada àescravidão Contemporânea no Continente Africano", expressa seu choque ao descobrir a extensão da escravidão.

"Dezenas de milhares de escravos negros na Mauritânia?”

"Propriedade de mestres de árabes e berberes? A ideia me pareceu absolutamente incrível! Como isso pode estar acontecendo e como poderia o resto do mundo não saber?".

Cotton atribui a continuação da escravatura na Mauritânia de hoje à ignorância do mundo acerca da situação.

"Com o desenvolvimento de minha pesquisa, tornou-se claro para mim que, embora com certa abundância de dados, o mundo não sabia o que estava acontecendo ao norte da África Ocidental. Enquanto trilhava o meu caminho através dos vários mapas, documentos e artigos que solicitei e recebi, um retrato da Mauritânia começou a surgir em minha mente.”

Enquanto você lê este artigo, "escravos" que tomaram o corajoso passo de entrar em cidades como Nouakchott e Nouadhibou estão vivendo em condições econômicas extremamente difíceis. Esta situação é repetida por Kevin Bales no livro Disposable People, que revela que os Haratines ganham cerca de US$ 8 por mês e são forçados a pagar taxas, como escravos comuns, para o governo.

Para os negros (Fulani, Wolof e Soninke) que vivem ao sul e, portanto, a certa distância de assentamentos tradicionais dos árabes, a vida não poderia ser pior. Discriminação legal é a ordem do dia, apesar de o primeiro presidente da Mauritânia, Mokhtar Ould Daddah ter declarado seu objetivo político de busca de um país em que árabes e negros viveriam juntos em paz e juntos construiriam um Estado-nação, em 1960.

Mas há uma grande diferença entre as declarações Mokhtar e o que ocorreu. Datando da época em que a Mauritânia tornou-se independente em 28 de novembro de 1960, e continua até os dias atuais, a construção nacional focou apenas na afirmação de um sistema discriminatório. Mokhtar, bem como os seus sucessores, quebrou a promessa de construir um país igualitário e, ao invés disso, tratou negros africanos como cidadãos de segunda classe, em termos legais.

Em 2000, por razões descritas como autoexplicativas, a Mauritânia deixou a Comunidade Econômica dos Estados Oeste Africano (ECOWAS), para se juntar ao grupo principalmente formado por países árabes do Norte Africano, consolidando assim a seu projeto de "arabização".

A implementação deste sistema de Apartheid da Mauritânia levou a sérios problemas de coexistência entre árabes e não-árabes.

Em 1989, mais de 120, 000 negros foram deportados para o Senegal e para o Mali e as razões por trás disso foi diminuir a quantidade de negros, uma vez que seu objetivo era criar um país todo árabe - e para explorar suas terras. Mauritânia é conhecido entre alguns círculos como "O Outro Apartheid".

Publicado originalmente em 28 de Agosto de 2012

Brasil e Mauritânia

Tendo em vista que a escravidão faz parte de nossa história, com marcas tão permanente até nossos dias, fiquei curioso para saber qual a relação entre o Brasil e a Mauritânia. Em resumo, sim, o Brasil mantêm relações diplomáticas com o país, digamos, escravocrata. Temos embaixada , eles têm . Está tudo muito bem, tudo muito bom. Ninguém fala nada.

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