Há alguns anos eu assisti uma reportagem sobre a
escravidão num país africano. Mauritânia. Lembro que a aberração foi
contextualizada culturalmente. Não exatamente para explicar a situação de
tantos seres humanos subjugados por essa “prática” deplorável, mas talvez para
não criminalizá-la (digo isso pelas repetidas citações da palavra “cultura” e
suas variações). E realmente confusa essa relação, por vezes paradigmática, contraditória,
entre o que seria [aceitável e admissível] cultura e o que seria considerado
crime, crueldade, desumanidade [logo, inaceitável e inadmissível].
Já disse aqui no TUIST e repito que, nesse espaço, eu
lanço meus preconceitos, minhas verdades efêmeras, transitórias, algumas vezes
minhas fraquezas, minhas dúvidas, minhas inseguranças. Mas também minha raiva,
meus desconfortos, minhas agonias.
Assinei a Rider’s Digest durante alguns anos e a matéria
que mais me marcou foi a história de Waris Dirie, modelo Somali (linda!) que
contou em primeira pessoa o que passou quando criança, como vítima da circuncisão
feminina (mutilação) praticada em sua tribo. Cultura aos olhos de quem?
Crueldade aos olhos de quem? Fiquei chocado e até hoje é difícil aceitar a
prática como algo admissível. É cruel, abominável, triste. Preconceito de minha
parte? É.
Pois bem, voltemos
à Mauritânia.
Há alguns dias li um artigo (pode ser lido também aqui) de Abda Wone no The Africa Report entitulada “Mauritania: Enslaving
Africans in Africa in 2012” (Mauritania: Escravizando Africanos na África em
2012). O título, por si só, já gera um desconforto (no mínimo). Wone não está
denunciando um grupo criminoso; não está relatando um caso isolado; tampouco
está fazendo alusão a algo no passado. Ele fala de um país: a Mauritânia; de
algo hediondo: a Escravidão; que está ocorrendo neste momento, “enquanto você
lê este artigo”.
Abaixo, segue uma tradução que fiz do artigo. Segundo um
dos autores citados por Wone, a persistência da prática escravista naquele país
(de certa forma institucionalizada) é a o fato de um mundo ignorar aquela
situação. Fica a questão, ignorar no sentido de “deixar prá lá”, “não é comigo”,
“não to nem aí”, ou ignorar no sentido de desconhecer. Para ambos os casos, é
importante que nos informemos.
Mauritania: Escravizando Africanos na África em 2012
Abda Wone
Para melhor compreender a Mauritânia, deve-se entender
que a escravidão foi abolida três vezes! A quarta abolição da escravatura ainda
está para ser anunciada uma vez que a prática generalizada no país continua
inabalável.
A primeira abolição no país da África Ocidental foi colocada
no papel em 1905, quando colonizado pela França.
A segunda, como resultado de uma continuidade da prática,
era para ser aplicada quando a Mauritânia se juntou à Organização das Nações
Unidas (ONU). Mas essa lei abolicionista era tão ambígua que apenas deu a
entender que a prática seria proibida pela Constituição. Não naquele momento,
mas em uma data futura!
As próprias classes que estão no comando das leis são as
mesmas que se beneficiam com a escravidão, e o regime continua explorando os
cidadãos considerados como "escravos". Não há sinais de que as
autoridades sejam sinceras quando falam de liberdade, seja de pensamento, de movimento
(de ir e vir) ou econômica.
Consequentemente, alguns negros, conhecidos como
"Negro-mauritanos", ainda são possuídos como escravos pelos ricos
senhores árabes, que apesar de serem Africanos preferem ser chamados de Árabes.
Então, essa é a luta em 2012 para libertar os
escravizados na Mauritânia em uma sociedade moderna.
Estamos em 2012, numa sociedade moderna, e ainda luta-se
na Mauritânia para libertar os escravizados.
A consciência política pré-histórica é tamanha que Birame Ould Dah, um abolicionista Mauritano, líder da Iniciativa para o Ressurgimento
do Movimento Abolicionista (sigla do original, IRA-Mauritanie) está detido desde
abril 2012.
Birame foi acusado de queimar obras acadêmicas
muçulmanas, enquanto insistia que seus autores justificam a prática de
escravatura na Mauritânia, por força do Islã. Opiniões nacionais e
internacionais associam a prisão de Birame a seu ativismo antiescravidão e sua
luta para informar o mundo sobre o que está realmente ocorrendo em seu país,
Mauritânia.
A prisão de Birame não cumpre nem mesmo as normas
concebidas para animais abandonados quando levados para o abate e não é
surpresa sua vida estar em perigo devido a sua condição de saúde. Uma condição imposta
pelas mesmas autoridades que em três ocasiões proibiram a prática que Birame os
lembra ainda existir.
Sudão e Mauritânia, onde os negros e os chamados
árabes coexistem no mesmo espaço geográfico, há muito tempo estão no negócio de
escravidão.
"Dezenas
de milhares de escravos negros na Mauritânia?”
"Propriedade
de mestres de árabes e berberes? A ideia me pareceu absolutamente incrível!
Como isso pode estar acontecendo e como poderia o resto do mundo não saber?".
Cotton
atribui a continuação da escravatura na Mauritânia de hoje à ignorância do
mundo acerca da situação.
"Com o desenvolvimento de minha pesquisa, tornou-se
claro para mim que, embora com certa abundância de dados, o mundo não sabia o
que estava acontecendo ao norte da África Ocidental. Enquanto trilhava o meu
caminho através dos vários mapas, documentos e artigos que solicitei e recebi,
um retrato da Mauritânia começou a surgir em minha mente.”
Enquanto você lê este artigo, "escravos" que
tomaram o corajoso passo de entrar em cidades como Nouakchott e Nouadhibou
estão vivendo em condições econômicas extremamente difíceis. Esta situação é
repetida por Kevin Bales no livro Disposable People, que revela que os Haratines
ganham cerca de US$ 8 por mês e são forçados a pagar taxas, como escravos
comuns, para o governo.
Para os negros (Fulani, Wolof e Soninke) que vivem ao sul
e, portanto, a certa distância de assentamentos tradicionais dos árabes, a vida
não poderia ser pior. Discriminação legal é a ordem do dia, apesar de o
primeiro presidente da Mauritânia, Mokhtar Ould Daddah ter declarado seu
objetivo político de busca de um país em que árabes e negros viveriam juntos em
paz e juntos construiriam um Estado-nação, em 1960.
Mas há uma grande diferença entre as declarações Mokhtar
e o que ocorreu. Datando da época em que a Mauritânia tornou-se independente em
28 de novembro de 1960, e continua até os dias atuais, a construção nacional
focou apenas na afirmação de um sistema discriminatório. Mokhtar, bem como os
seus sucessores, quebrou a promessa de construir um país igualitário e, ao
invés disso, tratou negros africanos como cidadãos de segunda classe, em termos
legais.
Em 2000, por razões descritas como autoexplicativas, a Mauritânia
deixou a Comunidade Econômica dos Estados Oeste Africano (ECOWAS), para se
juntar ao grupo principalmente formado por países árabes do Norte Africano,
consolidando assim a seu projeto de "arabização".
A implementação deste sistema de Apartheid da Mauritânia
levou a sérios problemas de coexistência entre árabes e não-árabes.
Em 1989, mais de 120, 000 negros foram deportados para o
Senegal e para o Mali e as razões por trás disso foi diminuir a quantidade de
negros, uma vez que seu objetivo era criar um país todo árabe - e para explorar
suas terras. Mauritânia é conhecido entre alguns círculos como "O Outro Apartheid".
Publicado originalmente em 28 de Agosto de 2012
Brasil e Mauritânia
Tendo em vista que a escravidão faz parte de nossa história, com marcas tão permanente até nossos dias, fiquei curioso para saber qual a relação entre o Brasil e a Mauritânia. Em resumo, sim, o Brasil mantêm relações diplomáticas com o país, digamos, escravocrata. Temos embaixada lá, eles têm cá. Está tudo muito bem, tudo muito bom. Ninguém fala nada.