O último domingo, dia 27 de Setembro, dia de São Cosme e São Damião foi “dia de pegar doce”. É com grande carinho, apreço e, por que não, certo saudosismo que me recordo de anos anteriores, principalmente na minha infância, esta data festiva.
Com o passar dos anos, tendo contato com mais pessoas, percebendo o mundo com outros olhos, analisando criticamente o que vejo, ouço, leio, vivendo outras situações que não aquelas da infância, onde tudo era festa (que saudade!), as lembranças dos 27 de Setembro de minha infância ganham mais valor.
São Cosme e São Damião, além de figuras santas no Catolicismo, estão sincretizados nas religiões afro-brasileiras como o orixá Ibeji da Mitologia Ioruba. Existem muitas referências ao orixá-criança na Internet. Vale pesquisar. Não me alongarei nessa questão, apesar de ter vontade de escrever mais sobre o assunto específico, pois me falta mais conhecimento. É o básico.
O preconceito e a ignorância, não necessariamente nessa ordem, contribuem para que muitos rejeitem (o que pode ser natural) ou, muitas vezes, hostilizem e até agridam quaisquer manifestações de festejo ou simples referência às festividades daquela data.
Talvez este seja um dos temas discutidos durante o Seminário Nacional sobre Proteção à Liberdade Religiosa, promovido pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR e que ocorre hoje e amanhã aqui n Rio de Janeiro. O assunto é de grande relevância.
A estupidez demonstrada pelas pessoas que destilam seus preconceitos e ignorância e mesmo aquelas que, dizendo respeitar, usam de comentários jocosos, com piadas e galhofas, não esquecendo os próprios seguidores e devotos que, pelo comportamento, ajudam a deturpar algo belo… essa estupidez me entristece. E me preocupa, uma vez que tal postura parece muitas vezes tida como comportamento vigente, normal, aceitável.
E é por conta desse sentimento tristeza que me ligo ao passado para viver melhor o presente. E nesse passado, foram exatamente as festividades de São Cosme e São Damião, no ambiente dos cultos afro-brasileiros, celebrando o Orixá-criança, o Ibeji, as crianças, que passei a respeitar e admirar algo cada vez mais desrespeitado, menosprezado, por muitos.
Vou contar brevemente, até para registrar para aqueles com os quais nunca compartilhei tais lembranças [e para mim mesmo], as festas e celebrações, os acontecimentos marcantes, as cerimônias em homenagem a São Cosme e São Damião.
A expectativa era grande nos dias que antecediam a data. Onde os doces seriam distribuídos? Sorteariam brinquedos? Dariam senha antes? Naquele tempo o mundo a minha volta parecia enorme, era gigantesco e, em grande parte inatingível. Meu microcosmo era um universo. Conforme crescia, vi as coisas foram diminuindo, ficando alcançável fisicamente e utópicas ao mesmo tempo, conseguia enxergar além daquelas ruas pelas quais corria para pegar os doces. Mas a sensação de mantém. Aquele mundo pequenino ainda está em mim.
Fora todas as casas e centros de Candomblé e Umbanda, existia um lugar particularmente esperado. Lá ocorria a grande festa, aguardada durante todo o ano. Era a casa da Dona Dagmar. Uma casa muito grande para os padrões de Mesquita, com dois andares, um salão na parte de baixo, terreno a imensa cozinha onde se preparava as guloseimas para a festança.
Se bem me recordo, o evento era de um dia, porém, estendia-se considerando os preparativos, que eram atrações a parte. Dos preparativos, muitos participavam. Eu mesmo ajudava na limpeza, no empacotamento dos doces, da feitura das comidas, muita comida. O grande dia era dividido em três partes: almoço para muitos convidados, distribuição dos doces e a festa noturna.
Para o almoço, dois porcos eram preparados. Um menor, que ia à mesa, assado inteiro, e o maior, usado no preparo das lingüiças e alguns cortes. Uma experiência única: encher lingüiça.
A comida era farta, saborosa, feita com esforço e dedicação e consumida com gosto por todos.
Pulemos para a festa noturna. Música, bebida, diversão, alegria, mais comida, danças. A festa, sempre aguardada, atraia pessoas de vários lugares. A religião ali não era estampada, mas internalizada e ficava patente a crença reinante. Era algo para todos.
E, entre o almoço e a festa à noite, eventos quase sobrepostos tamanha a grandiosidade do evento e tão curto tempo, estava a distribuição de doces.
Um desses estágios, no grande salão ou mesmo numa parte do terreno, era a mesa de doces. Manjas, pudins, bolos, cocadas, pés-de-moleque… uma miríade de cores, odores, texturas e sabores dispostas numa mesa imensa, especialmente montada para o evento, mas que também havia servido para o banquete do almoço.
O estágio concomitante, do qual tive o privilégio de participar pelo menos uma vez, era uma cerimônia onde o patriarca da família servia um prato de doces para algumas crianças escolhidas na casa. Comíamos sentados no chão, rodeados de representações e instrumentos em devoção aos orixás. Era a casa de santo. A cerimônia envolvida naquele momento era de uma beleza única. Era o lugar mais seguro e acolhedor do mundo. Ali, estávamos protegidos, cuidados, alimentados. Em paz. Se eu pudesse voltar a ser criança e viver momentos de minha infância, gostaria de voltar àquela casinha, me sentar no chão e degustar um prato de doce, rodeado de orixás protetores.
O terceiro estágio dessa segunda parte das celebrações era a distribuição dos pacotes de doces e alguns brinquedos. As senhas eram distribuídas com antecedência. Não lembro a quantidade, mas com certeza algumas centenas. Eu era um privilegiado, pois, sendo amigo da família, participava de tudo de dentro da casa. Podia assim ver a aglomeração de pessoas ao portão, crianças, adolescentes e adultos à espera de um saquinho de doces. Os que recebiam se retiravam para analisar o conteúdo, se maravilhar com a diversidade e quantidade.
Uma festa para todos, com um conteúdo e significado religioso, intrínseco no todo e evidente em alguns momentos. Tendo participado dessa celebração no passado, me fez nutrir um respeito tanto pelo viés católico como do sincrético afro-brasileiro. E, por essas e outras, me entristeço com o que algumas pessoas tentam fazer de algo tão belo.
Tendo ficado claro que algumas pessoas de minha família seguiam e seguem a religião dos Orixás, não posso deixar de citar outro evento do qual participei quando criança e que, assim como as festividades para as Crianças, me marcou profundamente. Foi quando minha prima, ainda adolescente, “fez o santo”. Foi uma cerimônia muito bonita. Cheia de cores, beleza, cheiros. O filho dela recentemente seguiu os passos da mãe. Ouvi alguns comentários do tipo “como pode envolver uma criança nesse tipo de coisa”… Bem, esse tipo de coisa é uma religião e merece ser respeitada. Não pude deixar de fazer algumas comparações com o Bar Mitzvá no judaísmo e o Batizado no cristianismo. Todas são cerimônias de grande importância, significado e beleza. Por que o preconceito?