Mais uma vez esse assunto. Talvez, quem sabe, um dia isso vire tema exclusivamente
dos livros de história, iguais aos que jazem empoeirados nos velhos sebos. Por
enquanto, infelizmente, faz parte do cotidiano de muitos. Alguns percebem,
outros não. Algumas vezes ganha repercussão, com grande estardalhaço, pitadas
de sensacionalismo, a turma dos “movimentos”, a galera do “deixa disso”, capas
de jornais e revistas, reportagens especiais, blábláblá… até que surge algo
mais “quente” e bola pra frente, vamu-qui-vamu, vira a página. Mas o assunto
continua. Em outro lugar, com outro alguém.
Há muito tempo que não escrevo. Já escrevi sobre esses “hiatos”, sobre
esse negócio de “não escrever”. Não vou me alongar nessas explicações. Hoje,
porém, depois de alguns tweets, vejo um arquivo na área de trabalho. O nome: Incomodo.doc.
O conteúdo tem quatro linhas:
Incomodo*
Elevador
Zona sul
Racismo
(*) por isso o nome do arquivo, atribuído automaticamente e aceito~
O arquivo data, como vejo depois de iniciar o texto, de Novembro de
2013. Tenho essa mania de, quando dá vontade de escrever (desabafar em
palavras) e não tenho tempo nem inspiração, faço anotações simples, seja em
arquivos, seja em e-mails salvos a seguir em rascunho, poucas vezes em papel.
Algumas vezes descarto, outras vezes dou continuidade ao projeto. Neste caso,
após muitos meses, cá estou tentando concluir. Vamos lá.
Sou negro, como podem ver pela foto do perfil. Uma característica que poderia
passar despercebida considerando que vivo num país miscigenado, num Estado com
uma população negra relevante, blábláblá.
Mas eis que essa característica simples assume uma relevância absurda
quando percebida num ambiente onde sua predominância é baixa, onde não é “esperada”
(por alguns, sequer aceita). Tal como um golfinho ou uma baleia quando aparecem
numa praia da Zona Sul, quando o fato ganha repercussão uma vez que tais seres estão
afastados de sua área (não de seu habitat, pois é o mar). Estão onde não se
espera que estejam. São observados, analisados.
Embora não por ser mamífero, também sou observado e analisado, talvez
com mais atenção, ao dividir o elevador (aqui mesmo no prédio onde moro) ou ao
entrar em estabelecimentos comerciais da região (Supermercado Zona Sul e
Hortifruti, por exemplo).
A primeira anotação feita neste arquivo de Novembro de 2013 foi “incomodo”,
na forma verbal, primeira pessoa do singular, pois é isso mesmo que percebo: EU
incomodo. Um mamífero de pele escura num bairro predominantemente de mamíferos
de pele mais clara causa estranheza em muitos mamíferos.
As pessoas mal disfarçam seu incomodo no elevador, por exemplo. Algumas
vezes, até me dão privilégio da exclusividade, ao se negarem a adentrar,
recusando a gentileza mais que humana daquele tempinho que um mamífero passa “segurando”
a porta do elevador para o outro mamífero.
Nos estabelecimentos, notoriamente os citados acima, conto com a
prestimosa atenção dos seguranças (alguns à paisana) que me acompanham por cada
corredor, cada gôndola. Como declarei recentemente num tweet para o Supermercado
Zona Sul, seria patético se não fosse cruel (não encontrei melhor palavra para,
naquele momento, exprimir o que sentia).
O absurdo assume certas características por vezes curiosas, por vezes cruéis
e/ou essencialmente criminosas. É que o incômodo, muitas vezes gera confusão.
O raciocínio de certa forma é até simples. Sendo um ambiente onde a predominância
é de mamíferos de pela clara, um mamífero de pele escura pode assumir um
comportamento distinto. Algo excepcional. Afinal, o que ele estaria fazendo “fora
de seu habitat”?
Muitas vezes, na rua, em restaurantes, bares ou outros
estabelecimentos, eu sou confundido (ou simplesmente relacionado, pela
aparência) com algum artista ou jogador de futebol. É interessante, confesso.
Mas, não posso dizer que me sinto bem. Estando ou não satisfeito, sou o que sou,
e não gosto quando me atribuem, para o bem ou para o mal, algo diferente (seja
por ignorância, seja por conceitos pré-concebidos).
Em outras vezes, a maioria na verdade, a confusão é outra. O
estereótipo do criminoso, do bandido, do vagabundo, parece se formar nas mentes
de seguranças, de porteiros, de policiais, de atendentes, de pessoas comuns,
mamíferos com diferente nuances de pele, seja mais clara ou mais escura. E a
atenção que me é dispensada se torna incômoda, restritiva, constrangedora,
humilhante, cruel, desumana.
Com alguns outros mamíferos de pela escura, além de tudo isso, a “atenção”
se torna violenta. Há poucos dias veio à tona a notícia, então quente (clique aqui, tem um vídeo interessante, aqui também), de um
mamífero de pele mais escura que foi preso e ficou encarcerado durante mais de
duas semanas por ser confundido (olha a confusão aí gente! chora... por que é
triste) com um assaltante. A "confusão", me fez lembrar um episódio de um seriado americano:
Racismo versus preconceito. Racismo não existe, somos uma só raça,
blábláblá. Ah, mas falamos em racismo num contexto histórico-sociológico e não
genético-biológico blábláblá. Ah, mas ninguém no Brasil pode se dizer negro ou
branco, dada a intensa miscigenação ao longo da história blábláblá. Ah, mas eu
não tenho preconceito, meu melhor amigo é negro, meu namorado é negro, minha
namorada é negra, minha mãe/pai é negro, o tio-avô da minha prima de segundo
grau é negro, eu sou negro blábláblá.
São tantos livros, tantas pesquisas, tantos artigos, tantos seminários,
congressos, simpósios, tantos encontros, tantos documentários, tantos filmes, tantos
programas, tantos gráficos, tantas estatísticas, tantas comparações, suposições,
afirmações e negações, tanta história, tanta biologia, tanta sociologia, tanta
genética, tanto blábláblá… que vamos nos
afastando da simples realidade.
Ser preterido no atendimento ou perseguido em estabelecimentos
comerciais, ser evitado em elevadores, ser confundido com famoso ou com
bandido, ser preso… ser morto. O ser negro incomoda muita gente. Ser negro pode
causar muita confusão.