"Não há exemplos na História de se ter conquistado a segurança pela covardia."
Transcrevo abaixo (parte de) um texto do professor José de Souza Martins, publicado ontem no Estadão a respeito da barbárie, aplaudida por alguns, ocorrida no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro.
Era de noite. Foi no Flamengo. Trinta marmanjos chegaram em 15 motos. Os quatro adolescentes caminhavam para Copacabana, "para tomar um banho de mar". "Era (um) fortão e tinha um magrinho. O magrinho já chegou jogando a moto em cima. Vou matar! Vou matar os quatro!" A moto e a enturmação fizeram o magrinho ficar fortão e valente. O magrinho foi acusando: "Bando de ladrão, fica roubando bicicleta dos outros". Três dos garotos conseguiram fugir. O menino de 15 anos, não. Nenhum deles estava de bicicleta.
Desde quando seus antepassados foram trazidos da África, empilhados em navios negreiros, para serem vendidos no Valongo depois de estirados na praia para destravar o corpo, o menino negro sabe quem manda e quem obedece. O tronco e a chibata no lombo de seus antepassados surraram também sua memória e lhe ensinaram as lições que sobrevivem 125 anos depois da liberdade sem conteúdo da Lei Áurea. A lei que libertou os brancos do fardo da escravidão antieconômica. Mais de um século depois, o menino ainda sabe como é que se fala até mesmo com moleque que herdou os mimos da casa-grande: "Eu não, meu senhor, todo mundo aqui é trabalhador", defendeu-se.
Esse menino descende de homens livres há mais de um século. Mas a chibata ficou lá dentro da alma, ferindo, dobrando, humilhando, criando desconfiança, ensinando artimanhas de quilombo para sobreviver. Esse "meu senhor" diz tudo, fala alto, grita na consciência dos que a tem. Esse "meu senhor" desdiz a liberdade, desmente a Lei Áurea, nos leva de volta aos tempos da senzala, do tronco e do pelourinho. Esse "meu senhor" expressa uma liberdade não emancipadora, que não integrou o negro senão nas funções subalternas de uma escravidão dissimulada, mas não na ressocialização para a liberdade e para a cidadania. Quem acusa o menino não sabe que a sociedade não pode colher o fruto que não semeou.
No dia 13 de maio de 1888 não libertamos ninguém. Continuamos todos escravos da escravidão que não acaba, da moral retorcida que nos legou, da consciência cindida que nos faz crer que somos uma coisa sendo outra. No mundo novo da liberdade abstrata de um contrato fictício não podemos nos encontrar porque não encontramos o outro, não podemos ser livres porque não nos libertamos no outro, não podemos ter direitos de que os outros carecem.
O menino levou uma surra de capacetes. "Bateu, bateu", disse ele a uma repórter. Desmaiou. Foi ferido a faca na orelha. Com uma trava de bicicleta, foi amarrado pelo pescoço num poste. Coisa de gente muito valente, coisa de macho: 30 homens contra um menino franzino. E na Câmara dos Deputados houve quem se orgulhasse disso. Confessou um deputado mais inclinado ao justiçamento do que à Justiça: "Praticou um ato corajoso quem deu uma surra nesse vagabundo, porque os moradores estão cansados de serem roubados e assaltados por essa gentalha". Isto é, gentinha, populacho, ralé. O mesmo tratamento que tinha vigência antes da lei do 13 de Maio, quando o escravo era considerado coisa, semovente, mercadoria, um ser abaixo da condição humana. Mero animal de trabalho, com a diferença de que das azêmolas diferia porque falava, gemia, chorava, sabia. (...)
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A quem interessar, o tal Deputado (Federal) chama-se Jair Bolsonaro.